No dia 21 deste mês o veterano da Marinha norte-americana Lawrence Faucette, de 58 anos, recebeu um coração de porco geneticamente modificado, transplante realizado no Centro Médico da Universidade de Maryland (EUA) que repercutiu em todo o mundo. O episódio não passou despercebido de um grupo de pesquisadores da Universidade Evangélica de Goiás (UniEvangélica), em Anápolis, que há cinco anos está mergulhado num estudo que visa aperfeiçoar as técnicas de bioengenharia em órgãos animais, em especial porcos, com o objetivo de gerar novos órgãos funcionais para serem transplantados em seres humanos.
“Trata-se da medicina regenerativa que em todo o mundo busca métodos alternativos para reduzir o sofrimento das pessoas que estão na fila de transplantes”, explica o professor doutor Luís Vicente Franco de Oliveira, coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Movimento Humano e Reabilitação da UniEvangélica. A bioengenharia de tecidos, segundo ele, é uma ferramenta terapêutica que pode transformar o cenário de transplantes em todo o mundo. No Laboratório de Cultura de Células da instituição há cinco anos são realizadas pesquisas que envolvem a descelularização, esterilização e recelularização com células tronco em pulmões, rins e coração de porco com o objetivo de criar novos órgãos.
Luís Vicente explica que o estudo é complexo e envolve muitas etapas. Embora seja uma fase preliminar, antes de se pensar na possibilidade de transplante para humanos, ele considera que o trabalho é vanguardista e coloca a instituição em pé de igualdade com vários outros centros de estudos mundo afora.
“Na bioengenharia nós descelularizamos um órgão, ou seja, retiramos todo o seu material biológico de células. Ele é lavado várias vezes, com agitação ou não, com detergentes biológicos. As células são retiradas da estrutura e fica num arcabouço, uma espécie de esqueleto que em inglês é chamado de scaffold. Essa estrutura precisa ser esterilizada com extremo cuidado para ficar livre de qualquer microorganismo. Após essa etapa vem o processo de recelularização com células tronco”, explica o professor. “A finalidade é gerar novos órgãos para serem transplantados em seres humanos.
Há falta de doadores em todo o mundo, um problema cultural em razão da ignorância, da crença religiosa, da falta de informação e de boatos”, completa. Trabalho minucioso A bioengenharia renal, como explica o docente, é difícil devido à variedade de células envolvidas, o que exige a superação de muitos obstáculos até chegar a um novo órgão reconstruído, viável para transplante. No Laboratório de Cultura de Células da UniEvangélica o que se busca é desenvolver um protocolo otimizado para identificar o método químico mais eficiente no processo de descelularização de órgãos de origem animal. “As pesquisas nessa área são muito complexas. Laboratórios no mundo todo vêm desenvolvendo diferentes estudos para tentar criar novos órgãos para serem transplantados em pacientes com doenças graves e ou incuráveis. Eu, pessoalmente, acredito que estamos no caminho”, afirma Luís Vicente.
É o que também pensa o pró-reitor de Pós-Graduação, Pesquisa, Extensão e Ação Comunitária da UniEvangélica, Sandro Dutra. Ele enfatiza que para encontrar esse caminho foi necessário identificar a vocação primeira da instituição, que é a tecnologia em saúde. “Essa tem sido uma máxima da nossa universidade. Estamos tentando nos aproximar do modelo que tem dado certo fora do Brasil, a união do setor produtivo com a academia.” Parcerias com empresas locais e de fora do estado têm sido fundamentais no aporte de recursos e investimentos. “Temos rompido barreiras”, afirma Sandro Dutra. Ele revela que a UniEvangélica está criando um Centro de Tecnologia em Saúde, o que deve atrair novos investimentos.
Além de recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg), canalizados para projetos da instituição, outro movimento identificado são de parlamentares que desejam apresentar emendas voltadas para pesquisa científica. “Temos recebido a visita de vários deles”, conta o pró-reitor. Suíno passou por modificação genética Lawrence Falcette foi o segundo paciente do mundo a receber um transplante de coração de porco. Portador de doença vascular periférica preexistente, com risco de complicações como hemorragia interna, o veterano da Marinha não era um bom candidato a um transplante convencional. Mas a insuficiência cardíaca o levaria a uma morte iminente, como noticiou a Revista Gen – Genetic Engineering & Biotechnology News. No dia 15 deste mês, a Food and Drug Administration (FDA), correspondente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil, concedeu aprovação emergencial para o transplante com um coração de porco geneticamente alterado. Procedimentos assim só ocorrem quando o paciente não tem outra escolha para tratar de uma doença grave ou potencialmente fatal.
Os grandes desafios de um xenotransplante é a possibilidade de espalhar uma doença de animal para humano e o risco de o sistema imunológico do receptor rejeitar o órgão estranho. Foi o que ocorreu com o primeiro paciente que recebeu um coração de porco em janeiro de 2022, cirurgia realizada pela mesma equipe do Centro Médico da Universidade de Maryland. O presidiário David Bennett, 57, morreu dois meses depois. Mesmo assim, a equipe considerou o procedimento bem sucedido. Uma soma de fatores pode ter contribuído para a rejeição, entre eles a saúde precária de Bennet, que precisou passar seis semanas ligado a uma máquina cardiopulmonar antes do transplante. Foram cinco anos de aprimoramento da técnica cirúrgica em primatas. Há 30 anos pesquisando xenotransplante, o diretor científico do programa na Universidade de Maryland, Muhammad M. Mohiuddin, tem publicado estudos mostrando que um coração de porco geneticamente modificado pode continuar a bater em seres humanos.
Ele atuou como assistente no transplante realizado pelo seu colega Bartley Griffith, o mesmo que operou o primeiro paciente. No caso de Lawrence Falcette, para evitar a rejeição, três genes foram eliminados do porco doador. Para fazer com que o sistema imunológico do porco aceitasse o coração humano, os cientistas inseriram nele seis genes humanos. O porco passou por dez edições genéticas distintas, incluindo a exclusão que se pensava ser responsável pelo crescimento anormal do tecido cardíaco. O porco, modificado geneticamente, foi fornecido pela Revivicor, uma subsidiária da United Therapeutics, uma das várias empresas de biotecnologia na corrida para desenvolver órgãos de porco adequados para potencial transplante humano. Xenotransplantes são aposta para zerar filas O transplante de órgãos animais para seres humanos é chamado de xenotransplante.
Pesquisadores de várias partes do mundo vêm estudando a possibilidade com o objetivo de atender à grande demanda de pacientes que aguardam um novo órgão. Na USP, o cirurgião Silvano Raia, responsável pelo primeiro transplante de fígado no Brasil, coordena ao lado da geneticista Mayana Zatz, um projeto que visa modificar geneticamente suínos para se constituírem em doadores de órgãos e tecidos, como rim, coração, pele e córnea. O projeto é pioneiro na América Latina. A ideia de xenotransplante não é nova e data dos anos de 1960, mesmo antes do cirurgião sul-africano Christian Barnard realizar o primeiro transplante cardíaco do mundo, de pessoa para pessoa, em 1967. Nas dezenas de experiências foram incluídos porcos, macacos, cabras e coelhos, mas houve um alto índice de insucesso devido à forte rejeição. Ao longo dos anos os porcos foram considerados ideais por possuir órgãos com dimensões e anatomias próximas aos dos humanos e pela possibilidade de criação controlada, podendo serem submetidos a estudos genéticos e pesquisa de agentes infecciosos. Em 2021, uma equipe de Nova York transplantou um par de rins suíno para o corpo de Jim Parsons, após sua morte cerebral.
Ele queria ser doador de órgãos e, com a aprovação de sua família, os rins de porco foram colocados no lugar dos seus, que foram doados. Os rins filtraram o sangue, produziram urina e não foram imediatamente rejeitados, o que foi considerado “notável” pelos pesquisadores. Os rins continuaram funcionando até o término do estudo, 77 horas depois. Para o professor John Wallwork, que realizou o primeiro transplante de coração, pulmão e fígado do mundo e foi um dos pioneiros dos xenotransplantes, é melhor dar a mil pessoas uma probabilidade de 70% de sobrevivência com um coração suíno do que dar a 100 pessoas uma possibilidade de 85% com um coração humano. Dados desta quarta-feira (27) do Sistema Nacional de Transplantes mostram que a fila de espera por um órgão no Brasil é de 40.540 pessoas, 459 delas em Goiás. Aguardam um rim, 37.324 pacientes.
Fonte: O Popular